Recentemente vêm se alardeando nas mídias sociais que a “anestesia inalatória causa câncer”. Tendo em vista que a propagação de informações fora de contexto pode alcançar o público em geral, resultando em intepretações equivocadas e questionamentos pelos responsáveis e tutores de animais, o Colégio Brasileiro de Anestesiologia Veterinária (CBAV) vem a público esclarecer a relação potencial entre a anestesia inalatória e o câncer por meio de respostas a quatro questões essenciais:

1) A anestesia inalatória causa câncer?
Inúmeras pesquisas na área médica vêm investigando a possível influência da anestesia inalatória no risco de recorrência de metástases no pós-operatório de cirurgia oncológicas (Lai et al. 2019; Yoo et al. 2019; Yap et al 2019; Hasselager et al. 2020; Hong et al. 2020). Entretanto, não há evidência científica estabelecendo uma relação de causa e efeito entre a anestesia inalatória e a ocorrência de câncer. Portanto, não se pode afirmar que ”a anestesia inalatória causa câncer”.

2) A anestesia inalatória pode aumentar o risco de metástases?
A possibilidade de recorrência do câncer após sua remoção/tratamento cirúrgico é influenciada diretamente pela imunidade (resposta das células de defesa e anticorpos) contra as células cancerígenas. À primeira vista, pode parecer improvável que um evento anestésico com poucas horas de duração influencie no risco de metástases, um evento que pode ocorrer vários anos após a anestesia/ressecção cirúrgica de um tumor maligno (Sessler & Riedel, 2019). Estudos demonstram que a resposta imune pode sofrer maior supressão com a anestesia inalatória do que com a anestesia intravenosa (propofol) (Inada et al. 2004). Entretanto, em mulheres submetidas à ressecção de tumor de mama, o grupo submetido à anestesia inalatória (2.246 pacientes) não apresentou maior risco de metástase ou piora no índice de sobrevivência a longo prazo (5 anos) em relação ao grupo onde a anestesia foi mantida com propofol (3.085 pacientes) (Yoo et al. 2019). Seguindo esta mesma linha, estudos clínicos em pacientes humanos submetidos à ressecção cirúrgica de vários tipos de tumores (tumor gástrico, hepático, pulmonar, de cólon e de mama) demonstram que a anestesia inalatória não resultou em pior desfecho clínico (mortalidade ao longo de 5 anos do pós-cirúrgico) quando comparada à anestesia intravenosa (Hong et al. 2020). Portanto, com base nestes estudos, o risco de metástases após cirurgia oncológica não deve ser um fator preponderante na escolha da modalidade de anestesia (inalatória versus propofol).

3) Metástases no pós-operatório de cirurgias oncológicas: será a anestesia inalatória o problema?A possível influência negativa da anestesia inalatória na recorrência do câncer/sobrevivência a longo prazo é um tema controverso, uma vez que há estudos demonstrando este efeito (Lai et al. 2019; Yap et al. 2019; Hasselager et al. 2020). Diferenças na recorrência do câncer e sobrevivência a longo prazo podem ser influenciadas por inúmeros fatores não passíveis de serem controlados. Portanto, pode ser desafiador identificar um fator predisponente à ocorrência de metástases a longo prazo no período pós-operatório (Glasner et al. 2010; Sessler & Riedel, 2019). O trauma tecidual causado pela cirurgia por si só causa ativação de vias neurais e inflamatórias, suprimindo a imunidade celular no pós-operatório e liberando fatores pró-angiogênicos. Estes efeitos neuroendócrinos induzidos pela cirurgia, podem impedir a atividade das células NK (“natural killer”), as quais são a maior defesa contra o câncer (Sessler & Riedel, 2019).

Estudos experimentais sugerem que procedimentos cirúrgicos que resultam em maior grau de trauma tecidual (o que dependendo do tipo de cirurgia oncológica seria inevitável) podem estar associados a um maior risco de metástases: em um modelo experimental de tumor de mama em ratos, a ressecção tumoral não progrediu para metástase a menos que estivesse associada à extensão do trauma cirúrgico (realização de mastectomia e laparotomia) (Glasner et al. 2010). Portanto, técnicas cirúrgicas minimamente invasivas, quando aplicáveis, podem reduzir o risco de recorrência do câncer (Lacy et al 2002; Martin et al. 2007).

4) Anestesia intravenosa (TIVA –“total intravenous anesthesia”) ou inalatória em cirurgias oncológicas: há embasamento para se favorecer uma em relação à outra na medicina veterinária?
Com base no risco de metástases após cirurgias oncológicas não há, até o presente momento, evidência definitiva que justifique o favorecimento de uma técnica em relação à outra na área médica e tampouco na medicina veterinária. Entretanto, independentemente de se tratar de anestesia intravenosa (propofol) ou inalatória (isoflurano ou sevoflurano), técnicas anestésicas loco-regionais devem ser empregadas sempre que possível. Estudos de meta-análise envolvendo 51.620 pacientes humanos demonstram uma associação entre a anestesia do neuro-eixo e uma melhora no índice sobrevida de pacientes com câncer (Weng et al. 2016). Esta associação pode estar relacionada ao fato de que a anestesia loco-regional é capaz de suprimir a resposta neuroendócrina causada pelo estresse cirúrgico (aumento do cortisol e catecolaminas circulantes). Além deste fato, a redução do consumo de opioides, devido ao melhor controle da dor obtido com a anestesia loco-regional, é particularmente benéfica em pacientes submetidos a à cirurgia oncológica.

Embora, pelos fatores acima expostos, a anestesia loco-regional deva ser empregada sempre que possível em pacientes oncológicos, deve-se adotar cautela com o emprego de técnicas que envolvem o bloqueio do neuro-eixo (anestesia peridural ou subaracnóidea) para ressecção de processos tumorais. Nestas cirurgias pode haver o potencial para sangramento/hipovolemia importante no intra-operatório (exemplos: ressecção de tumores no fígado e baço, hemangiosarcoma). Devido ao bloqueio ganglionar simpático causado pela anestesia peridural/subaracnóidea, pode haver descompensação cardiovascular de difícil manejo/reversão caso ocorra hemorragia intra-operatória significativa. Havendo a impossibilidade de realização ou contra-indicação de bloqueios loco-regionais, técnicas de PIVA (“partial intravenous anesthesia”), utilizando infusões contínuas de associações de opioides, cetamina e lidocaína, podem ser uma boa opção para se proporcionar analgesia intra-operatória em cães. Em felinos, o uso da lidocaína por infusão contínua é controverso, uma vez que esta espécie é mais sensível a à intoxicação por este fármaco em relação aos cães.

Com relação ao emprego da anestesia inalatória ou intravenosa (propofol) em cirurgia oncológica, deve-se considerar outros fatores na opção por uma destas modalidades. O controle da profundidade da anestesia geral e, consequentemente do grau de depressão cardiovascular, pode ser realizado de forma mais imediata e previsível com anestésicos inalatórios do que com o propofol. Portanto, a anestesia inalatória pode ser favorecida em relação ao propofol como agente de manutenção da anestesia geral em cirurgias de alto risco. Outro fator importante a ser considerado, é a recuperação acelerada da anestesia proporcionada pelos agentes inalatórios em animais submetidos a à cirurgia oncológica. Nestes animais, dependendo do grau de debilidade sistêmica, pode ocorrer recuperação excessivamente prolongada após a manutenção da anestesia com propofol.

5) Conclusões:
A técnica anestésica deve minimizar o estresse peri-operatório e otimizar a recuperação do paciente do procedimento anestésico/cirúrgico. A cirurgia oncológica, em função da sua extensão/grau de invasividade, frequentemente demanda que os animais estejam sob anestesia geral. Entretanto, a escolha entre anestesia intravenosa ou inalatória não pode ser guiada pelo risco de recorrência do tumor. Além de outras técnicas analgésicas (exemplos: PIVA, anti-inflamatórios não-esteroides), deve-se considerar o uso de bloqueios loco-regionais associados à anestesia geral em uma técnica anestésica balanceada para animais com câncer.

6) Referências:

Glasner A, Avraham R, Rosenne E, Benish M, Zmora O, Shemer S, Meiboom H, Ben-Eliyahu S: Improving survival rates in two models of spontaneous postoperative metastasis in mice by combined administration of a beta-adrenergic antagonist and a cyclooxygenase-2 inhibitor. J Immunol 2010; 184:2449–57

Hasselager RP, Hallas J, Gögenur I. Inhalation or total intravenous anaesthesia and recurrence after colorectal cancer surgery: a propensity score matched Danish registry-based study. Br J Anaesth. 2020; S0007-0912(20)30940-5.

Hong B, Lee S, Kim Y, Lee M, Youn AM, Rhim H, Hong SH, Kim YH, Yoon SH, Lim C. Anesthetics and long-term survival after cancer surgery-total intravenous versus volatile anesthesia: a retrospective study. BMC Anesthesiol. 2019; 19(1):233.

Inada T, Yamanouchi Y, Jomura S, Sakamoto S, Takahashi M, Kambara T, Shingu K. Effect of propofol and isoflurane anaesthesia on the immune response to surgery. Anaesthesia. 2004; 59(10):954-9.

Lacy AM, García-Valdecasas JC, Delgado S, Castells A, Taurá P, Piqué JM, Visa J. Laparoscopy-assisted colectomy versus open colectomy for treatment of non-metastatic colon cancer: a randomised trial. Lancet. 2002; 359(9325):2224-9.

Lai HC, Lee MS, Lin C, Lin KT, Huang YH, Wong CS, Chan SM, Wu ZF. Propofol-based total intravenous anaesthesia is associated with better survival than desflurane anaesthesia in hepatectomy for hepatocellular carcinoma: a retrospective cohort study. Br J Anaesth. 2019; 123(2):151-160.

Martin MA, Meyricke R, O’Neill T, Roberts S: Breast-conserving surgery versus mastectomy for survival from breast cancer: The Western Australian experience. Ann Surg Oncol 2007; 14:157-164

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Yoo S, Lee HB, Han W, Noh DY, Park SK, Kim WH, Kim JT. Total Intravenous Anesthesia versus Inhalation Anesthesia for Breast Cancer Surgery: A Retrospective Cohort Study. Anesthesiology. 2019; 130(1):31-40.